“É um trabalho de 15 anos. Fiz um teste. Fui escolhido pelo Michael Mann [diretor do filme] e ele disse: ‘Esse personagem foi feito para você. Você foi feito para esse personagem’”, diz Gabriel Leone sobre sua grande estreia em “Ferrari“, longa-metragem que chegou aos cinemas nacionais na última quinta-feira (22).
Era uma sexta-feira à tarde, na derrocada da agenda semanal frenética de um ator em ascensão, quando este Papelpop pode se conectar numa videochamada com o ator, diretamente de um aeroporto no Rio de Janeiro, para falar sobre os caminhos artísticos trilhados até aqui.
Além de dar vida ao destemido e transformador piloto Afonso de Portago, que tem papel primordial para a gigante do automobilismo Ferrari, depois de muitas produções para televisão, a fase profissional de Leone está voltada para outras séries e filmes.
Ainda este ano, ele estrelará a aguardada série biográfica de Ayrton Senna, ídolo do país morto em maio de 1994, feita para Netflix.
Ele não faz meias palavras: “É o maior desafio da minha carreira, sem sombras de dúvidas. É uma alegria, uma honra ter feito ele. Tenho muito orgulho do que a gente fez. […] A série foca na vida dele como um todo. Então, lógico que vai ter relação com a família e com os interesses amorosos que ele teve. Mas, acima de tudo, [terão] os feitos dele no esporte”, diz o carioca sobre a produção do Tudum.
Leone dará as caras, ainda, no longa-metragem “A barba ensopada de sangue”, adaptação do livro de Daniel Galera, e na leva final de episódios da série sobre o bandido gato Pedro Dom, “Dom” (Prime Vídeo).
“É uma temporada menor, com apenas cinco episódios. As coisas acontecem quase que de forma alucinantes. É bem, bem intenso e triste, pois estamos falando de uma história real que fala, também, de outras histórias reais. Quem acompanha e conhece a série vai se impactar.”
No bate-papo a seguir, Gabriel Leone fala sobre a construção do piloto De Portago, seu ofício como ator, a linguagem cinematográfica de Michael Mann e como enxerga o âmbito cultural do governo Lula, neste terceiro mandato — até o momento.
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Papelpop – Tava lendo a entrevista que você deu pra CNN e caderno ELA e vi que o papel em Ferrari surgiu para você meio de supetão, depois de um produtor falar do seu trabalho para o Michael [Mann]. O que foi mais desafiador: essa rapidez de resposta, quase que de surpresa, ou você já se sentia pronto para um papel como esse?
Gabriel Leone – Na época que aconteceu, eu já vinha trabalhando com uma manager nos Estados Unidos. Então, já tinha feito testes pontuais. As coisas aconteceram de uma forma muito rápida e os astros ajudaram porque, sei lá, poderia ter rolado o teste e eu estar com outro projeto naquele momento. Calhou de que, na época, eu estar disponível. E depois eu fui entender que aconteceu tudo muito rápido porque meu personagem foi o último a ser escalado. Tanto é que eu fiz o teste; mandei a selftape [vídeo em formato de selfie, fazendo uma cena]; dois dias depois, fui aprovado; uma semana depois, entrei numa videochamada com o Michael para me dar as boas-vindas, já da Itália; e um mês depois, eu já tava morando na Itália. Foi tudo muito rápido, porque eu fui o último a entrar.
PP – Então, diante disso tudo, o que você acha que foi mais desafiador nesse projeto?
Gabriel Leone – Acredito que foi uma experiência nova que tem seus desafios por si só. Claro que é o inglês. Por mais que eu viesse me preparando, fazendo aulas e testes, foi a primeira vez que eu fui dirigido em inglês, que eu atuei em inglês. Isso tudo foram novidades. E o negócio é diferente, quando você tem que rodar em inglês, chegar no set. Para além disso, como todos os personagens que fiz até hoje, os desafios que eles me trazvem. Fiz um piloto de Fórmula 1 e, por conta desse filme, pude me preparar, junto aos outros atores que interpretaram pilotos, num autódromo de lá [Itália] com os stand drivers e carros de corrida que usamos no filme. Ficamos mais de um mês, treinando três vezes na semana. Tanto que tem algumas cenas que eu mesmo dirigi.
PP – As arrancadas são suas, né?
Gabriel Leone – Isso. Geralmente, as arrancadas eu fiz; algumas paradas e freadas também foram eu; e um ou outro close foram eu, também. É um personagem muito rico. Ao mesmo tempo que ele era um marquês, um nobre (e o Michael me propôs que eu fizesse aulas de dança clássica, para encontrar a postura do dinheiro de família), o roteiro também sugeria que ele lembrava o Marlon Brando jovem. Tinham coisas ali na forma de se vestir, uma rebeldia iminente. São os desafios que os personagens nos trazem de mergulhar e explorar esse universos novos.
PP – Falando nisso, o De Portago é um homem destemido, posturado, corajoso, que vai atrás do Enzo no carro e depois no escritório. Pedro Dom é um jovem viciado em adrenalina, em viver o impossível. Você acha que a gente consegue traçar um paralelo entre eles, de vício pela vida?
Gabriel Leone – Acho que sim. Nesse ponto, a gente consegue comparar, sim. São dois personagens que vão atrás do que querem e, geralmente, conseguem. Faz sentido, por mais que tenham muitas diferenças entre eles. São destemidos.
PP – Sua cabeça deu uma bagunçada, quando você, talentoso demais, se viu ao lado de outros grandes atores no set, como Penélope Cruz e Adam Driver?
Gabriel Leone – Cara, não. Eu tava, claro, muito feliz de fazer parte desse projeto, especialmente pelo Michael [Mann], uma lenda do cinema. Um dos maiores diretores vivos. Ter sido escolhido por ele para viver esse personagem tão relevante pra trama mas, claro, estar ali com atores que admiro, como esses que você citou, me deu muita felicidade. Mas eu tava muito focado e me agarrando a essa confiança e certeza de todo o meu trabalho e trajetória. Você citou “Dom” e, em um dos papos com o diretor, ele falou que, além do teste que fiz, ele queria conhecer mais do meu trabalho e assistiu ao primeiro episódio da série. É um trabalho de 15 anos. Fiz um teste. Fui escolhido pelo Michael Mann para esse personagem e, desde o primeiro momento, ele disse: ‘Esse personagem foi feito para você. Você foi feito para esse personagem’. Tinha muita confiança nele e no meu trabalho. Todos no set foram muito generosos comigo.
PP – Falando no Michael, ele tem uma linguagem cinematográfica bem brutal e explícita. Tem uma sequência bem forte em “Ferrari” que você sabe qual é e eu não vou falar para não dar spoiler pra quem tá lendo, rs. Você acha que combinou com a história essa linha do diretor?
Gabriel Leone – Acho que, acima de tudo, não só combina com a história da Ferrari como também com a história do automobilismo, especialmente naquela época. Tem estatísticas que mostram que morriam 40 pilotos por ano. Fórmula 1 não tinha praticamente segurança nenhuma. Acidentes eram comuns. Então, dentro do recorte que o Michael escolheu, é o que tem um impacto maior pro Enzo, pra fábrica, pra tudo. Isso faz parte do cinema do Michael: construir esse nível de realidade a ponto das pessoas entrarem dentro da cena e se sentirem impactadas e incomodadas. Toda vez que eu vejo o filme, em todas as sessões, eu fico reparando na reação das pessoas nessa sequência que você citou e eu não vou falar. [Gabriel ri] É incrível ver as pessoas se contorcendo, e que bom que tem impactado dessa forma.
PP – Ferrari tem ali a temática da relação do Enzo com a imprensa que pega no pé dele. Já vi você postando poucas fotos com seu pai, com Carla Salle, sua esposa. Como você lida com seu trabalho ser exposto e sua vida pessoal?
Gabriel Leone – Eu lido com isso de forma muita tranquila. Pela profissão que eu tenho, a gente acaba tendo uma exposição muito grande, naturalmente. Mas procuro separar ao máximo as coisas. Sempre brinco que a minha vida pessoal é pessoal mesmo. É só minha e das pessoas que fazem parte do meu ciclo. Procuro deixar aqui. É meu, e só. Especialmente pela exposição já natural que existe, pelo alcance dos trabalhos.
PP – O seu olhar diz muito, em cena. Tanto nas cenas de corrida de alta velocidade como, por exemplo, naquela sequência da segunda temporada de Dom, que ele tá alucinando na solitária, ou quando ele tá cheirando o pó do chão na primeira temporada, é quase como que seus olhos batessem um texto pra gente, que te assiste. Como você concentra sua mente pro olhar dizer tanto assim?
Gabriel Leone – Legal você abordar isso. Acredito que, primeiro, isso tem a ver com a linguagem do vídeo, que possibilita a câmera perto de nosso rosto. A câmera consegue ler o que está acontecendo dentro de você através da nossa tela, que são os olhos. Acho que saber usar dessa ferramenta e da linguagem é muito importante. E acima de tudo, a forma como eu me conecto com os personagens é primordial. É importante demais, para mim, saber o que está rolando dentro dos personagens, o que eles estão sentindo. Claro que o texto e as movimentações são peça-chave, mas o que está passando aqui dentro [Gabriel leva as mãos ao coração] é o que eu tenho para oferecer, que são os sentimentos e a minha verdade. E é aí onde eu me conecto, de fato. O olho acaba sendo essa janela de tudo que está sendo transmitido, independentemente se com falas ou não. E por isso, eu gosto muito dos momentos de silêncio. É onde a plateia se conecta com os olhos de forma direta, sem marca, sem texto. É sentimento gerando sentimento, sabe?
PP – Sim, demais! Aproveitando que estamos aqui, queria falar de outros trabalhos. ‘Senna‘ deve vir nos próximos meses. Por ele ser um ídolo, as pessoas vão gostar? Ficou satisfeito com sua entrega?
Gabriel Leone – Nosso objetivo é esse. Não tenho como controlar como as pessoas vão receber e vão lidar. É uma história muita emocionante. A gente sabe do peso que o Senna tem quanto ídolo para os brasileiros. O que ele é e o que ele representa para as pessoas. Como ele emocionava e inspirava, pessoas do mundo todo, de A a Z. Como a gente tá falando de emoção, era um cara que se conectava de uma forma muito única, né? Sem ver classe social. Todo mundo envolvido nesse projeto tinha noção total da responsabilidade que a gente tinha e colocamos todos os nossos corações nele, que era o que a gente tinha pra fazer. Sem sombras de dúvidas, é o maior desafio da minha carreira. É uma alegria, uma honra ter feito ele. Não vi pronto ainda, mas sou muito feliz e tenho muito orgulho do que a gente fez. E torço para que bata bem em cada um que assistir.
PP – Teve toda aquela polêmica de ‘vai ter Xuxa‘, ‘não vai ter [Adriane] Galisteu‘. Vai focar na vida pessoal dele? Você fez muitas cenas com essas personagens?
Gabriel Leone – A série foca na vida dele como um todo. Então, lógico que vai ter relação com a família e com os interesses amorosos que ele teve. Mas, acima de tudo, [terão] os feitos dele no esporte. É um cara que viveu uma vida curta, mas muita intensa. Vamos ter um pouquinho de tudo. Sempre muito focado na emoção que ele transmitia, na relação que ele construía com as pessoas que cruzaram o caminho dele.
PP – E a próxima temporada de ‘Dom‘ chega em breve. O fim desse capítulo ficou à altura das outras temporadas, depois de uma segunda temporada mais morna?
Gabriel Leone – Com toda certeza. Já assisti pronta. É uma temporada menor, com apenas cinco episódios. As coisas acontecem quase que de forma alucinantes. Desde o início da série, a gente sabe que é uma tragédia. Não tem muito como escapar. E acho que, quanto conclusão, aquela coisa acaba ficando mais intensa do que nunca. O tempo dele vai acabando cada vez mais. E tentando escapar. É bem, bem intenso e bem, bem triste, pois estamos falando de uma história real que fala, também, de outras histórias reais. Quem acompanha e conhece a série vai se impactar.
PP – E para fecharmos, você é um ator que se posiciona politicamente com frequência. Lembro de ver que você compartilhou uma charge da Laerte no dia que o clã Bolsonaro foi alvo de busca por conta da ABIN paralela. Como você avalia o governo Lula no âmbito da cultura até aqui, nesse terceiro mandato, conversando e tendo contato com atores, atrizes, produtores, etc.?
Gabriel Leone – Sinto uma melhora. Acho que a perspectiva é melhorar mais, inclusive. Mas é difícil. Foram anos tão duros e com tanta porrada na nossa classe que eu acho que não vai ser simples de reconstruir. Não vai ser num curto prazo. Vai ser num prazo maior. Mas acho que a perspectiva é boa. Acredito que as coisas estão começando a se acertar, aos pouquinhos.
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“Ferrari”mostra os bastidores da Fórmula 1 em 1957, quando o ex-piloto Enzo Ferrari (Adam) está em crise, com a eminente falência de sua empresa e as dificuldades em seu casamento com Laura (Penélope).